quarta-feira, 26 de maio de 2010

Polícia Para Quem Nem Precisa

Chegar a São Francisco dá uma sensação forte de déja vu, aquilo que te dá quando a décima pessoa sem noção começa a te explicar o que essa expressão significa. Quem é velho o suficiente para ter pêlos nas orelhas e se perguntar para que servem, já assistiu trocentos filmes focalizando aquele visual belíssimo da baía de Hudson e da Golden Bridge, e sabe o que eu quero dizer. Aliás, essa é a sensação freqüente que o visitante experimentava, quando se deparava pela primeira vez com as localidades cujas imagens se tornaram clássicas graças ao cinema ou à TV. Era o preço pago pelos americanos, que acostumaram-se a despejar pelo mundo afora, em forma de rolos de filme e roteiros repletos de chavões, suas obras repletas de ideologia auto-promocional. Nada contra. Assisto de montão, feliz da vida.

Verdade ou ficção, em algumas situações surreais me ocorria uma dúvida terrível sobre quem tinha aparecido primeiro na Califórnia:

a) as pessoas comuns, cujos diálogos se pareciam mais reais na tela do que à luz da vida
b) a Associação Hollywoodiana de Redatores

Dia desses, perguntei ao meu amigoTarantino, "me diz aí quem surgiu primeiro". Ele me respondeu, com aquele jeitinho que é só dele:

- É claro que foi a AHR. E já falei que meu nome é TarantiNHO, não sou seu amigo e não entendo picas de cinema.

Mesmo assim, ficamos fascinados com a imagem da bela ponte naquela cor incrivelmente alaranjada, com a baía de Hudson ao fundo e resolvemos dar uma parada para observar o crepúsculo que se avizinhava. Paramos o carro num local que consideramos seguro e, de câmera na mão, fomos registrar o visual. Dois cliques de máquina fotográfica depois, nos vimos completamente cercados de policiais carrancudos com suas mãos rosadas sobre os coldres. Deviam ser uns quatro carros de polícia, incluindo uma van daquelas de transporte de presos. Um verdadeiro destacamento coloria a paisagem com suas luzes giratórias, tendo o nosso carro no centro do círculo, refletindo o espetáculo.

Alguém gritou "freeze!"

Foi tudo muito rápido e ficamos mesmo congelados, à espera de instruções e dispensando traduções. Àquela altura, com mais de cinco mil quilômetros de estradas americanas percorridas, já estávamos mais que experientes sobre como agir na mira de uma corporação que atirava antes e perguntava depois, a temida polícia dos gringos. Assim como naquele jogo infantil “como está fica”, prendemos até a respiração. Um dos oficiais se dirigiu a nós bruscamente, exigindo que nos identificássemos e perguntando o que fazíamos ali.

A minha resposta podia envolver a mãe dele e me colocar em alguma encrenca, por isso me limitei a entregar a ele o meu passaporte verde brasileiro, todo amassadão, e minha carteira de motorista internacional fuleira, emitida pela instituição mundialmente desconhecida e ignorada, que era o Automóvel Club do Brasil (ACB).

Vamos entender lá o que se passava nas cabecinhas dos policiais americanos. Com boa vontade, faz favor. Situações suspeitas eram indícios que mereciam verificação. Um carro parado fora de estacionamento e com placa provisória? Três indivíduos com aparência de latinos? Àquela hora? Só podem ser vagabundos. Pensando bem, até que os oficiais não estavam tão errados assim...Mas não precisava esculachar. Só que os policiais de lá não esperavam pra ver e procuravam os problemas, antes que estes se desenrolassem. Aquela situação me lembrou de uma madrugada fria em um dos inúmeros motéis de beira de estrada em que ficamos, quando observei um carro de polícia rondando, com seu oficial inexpressivo e silencioso, que entre um gole e outro de sua caneca de cafeína aguada conferia no seu computador de bordo as placas dos carros estacionados.

Assim, naquela tarde de verão, à sombra da Ponte Dourada, como de nada puderam acusar-nos, os desapontados policiais de Frisco ordenaram que saíssemos dali, avisando-nos que, caso quiséssemos insistir na idéia de tirar fotos, que nos dirigíssemos aos locais assinalados com as placas de “pontos panorâmicos” ou coisa assim, porque ali onde estávamos era perigoso. Mas isso a gente já tinha entendido: o perigo era a própria polícia metropolitana!

Foi então que entendi o porque de nosso déja vu inicial de São Francisco: ora, todas as fotos e imagens daquela e de todas as belas paisagens americanas deviam ser clicadas sempre dos mesmos ângulos. Só daqueles que tinham as tais plaquinhas que queriam dizer "seu burro, aqui é que lugar de fotografar".

Desistimos então de temporizar o eterno crepúsculo de São Francisco e procurar um lugar para passar a noite.

Alguém resmungou:

- Amanhã a gente compra alguns cartões postais da Ponte. Vai dar no mesmo e ninguém vai nos prender por isso.

Deu no mesmo, mas tentaram me prender de novo por outro motivo, que dia desses eu conto.

quarta-feira, 19 de maio de 2010

Pelo Alasca de Carona

Quando a gente quer muito, mas muito mesmo alguma coisa, ela acontece. Eu estava pensando na verdade contida naquelas palavras, enquanto estávamos, eu e meus parceiros de viagem, na beira daquela estrada. Colocamos nossos pertences sob a tenda de náilon e ficamos ali, por um bom tempo, pedindo carona na beira da estrada entre Valdez e Anchorage, no Alasca.

Os poucos carros e caminhões que passavam nos ignoravam, deixando apenas um rastro de fumaça e gelo na pista deserta. Já chegava a noite, apesar de não parecer, já que em maio nunca anoitecia naquela imensidão de branco e montanhas do pólo norte. Não falávamos muito, cada um de nós imerso em seus próprios pensamentos. Quando começou a chover forte demais, atravessamos a estrada, deixando nossas coisas ali mesmo, sob a chuva grossa. Fomos para uma lavanderia deserta, que ficava no outro lado da pista para Anchorage, mas que parecia um excelente refúgio para o frio intenso que fazia lá fora, abaixo de dois graus centígrados. Era uma daquela lavanderias “coin-up”, ou seja, totalmente operadas pelo cliente com uso das moedas de vinte e cinco centavos, verdadeiras chaves que abriam um monte de portas naquele país. Com elas, as moedas, o cliente podia comprar uma pequena caixa de sabão em pó, café aguado e o jornal local, enquanto utilizava as lavadoras e secadoras, tudo bem ao estilo americano de “faça você mesmo e não encha meu saco”.

Aproveitamos para colocar para secar os nossos casacos, que já estavam ensopados, e ficamos observando o rodar da máquina, hipnotizados. Alguém teve a idéia de ligar a televisão e sintonizou um clipe do Mike and The Mechanics, uma banda inglesa que eu adorava. No videoclipe eles tocavam a canção All I Need Is A Miracle, cujo título me pareceu muito adequado para a situação em que eu me encontrava. Somente um milagre podia me tirar daquela situação, já que tudo o que eu imaginava como provável de acontecer, tinha simplesmente se dissolvido como areia nas minhas mãos e em poucos dias. Eu e os meus colegas de viagem não tínhamos qualquer idéia sobre o que fazer naquela situação. Sabíamos que não poderíamos simplesmente ligar para nossos familiares pedindo ajuda e sermos resgatados como náufragos à deriva nos nossos próprios sonhos, mas essa era a última das opções por uma questão de honra. Tínhamos que encontrar, em algum lugar o fio da meada, o ponto onde a gente havia perdido o caminho, quando tudo até então parecia pender favoravelmente para o nosso lado e as boas coincidências aconteciam, como a de termos encontrado pessoas que nos ajudaram tanto, os carros com os quais cruzamos o imenso país, no esquema de “driveaway", sem dar qualquer problema mecânico. Paradas inesquecíveis que fizemos ao longo do Golfo do México, as lindas paisagens desérticas no Arizona, a visita ao Grand Canyon.

E agora, apenas a chuva fina numa estrada deserta e uma canção na qual o destino parecia estar rindo da nossa cara, com o Mike e seus “mecânicos” cantando ‘tudo o que preciso é de um milagre’.

Enquanto nossa roupa secava, um policial rodoviário parou seu carro e caminhou até nossas coisas deixadas à beira da estrada. Olhou, olhou mais um pouco, voltou para o carro e se foi. Tínhamos que sair dali, senão logo teríamos problemas com a lei e pra piorar a situação, nos restava pouquíssimo dinheiro e procurávamos economizar cada centavo.

Resignados e de certa forma refeitos após o descanso, pegamos nossas mochilas e seguimos estrada abaixo, em direção a Anchorage. Nossa lógica era a seguinte: se Anchorage era realmente a maior cidade do Alasca, seria lá que alguma oportunidade de trabalho poderia aparecer. Valdez e as cidades vizinhas nos pareciam assustadoramente pequenas, com suas casas de madeira isoladas entre si por grandes propriedades de bosques e florestas. Nada de prédios, lojas, lanchonetes ou albergues onde imigrantes famintos pudessem arrumar um emprego ilegalmente sem serem pegos pelos oficiais de imigração americanos.

Como o clarão esbranquiçado da noite ártica já trazia seus enormes e famintos mosquitos, resolvemos parar para dormir. Encontramos um pátio de estacionamento de uma loja de conveniência, onde algumas carretas de caminhão jaziam, meio que abandonadas. Escolhemos uma e nela prendemos o teto da tenda. O caminhão parado serviu então de suporte para nossa improvisada barraca.

Na paisagem deserta, os mosquitos já atacavam até os postes de luz, insaciáveis. Como o zíper da nossa tenda estava muito destruído, tivemos a desesperada idéia de usar agulha e linha para costurar a entrada, selando nossa improvisada moradia até o dia seguinte. Após alguns minutos eliminando os mosquitos que tinham conseguido entrar, ficamos finalmente em paz, ouvindo o pipocar da chuva na tenda, sobre nossas cabeças molhadas. Suspiramos fundo e nos encolhemos em nossos cobertores e sacos de dormir, procurando a reconfortante companhia dos sonhos.

Fazia muito frio e caía uma fina camada de gelo lá fora, no meio do nada, no topo do mundo, onde todas as dúvidas e incertezas do mundo espreitavam.

terça-feira, 18 de maio de 2010

Albergues da Juventude nos EUA: como funcionavam

Cruzamos à noitinha os limites de Seattle e formos direto para o albergue que constava no guia. Foi simples situar-se naquela cidade, pois o Space Needle, este enorme prédio em forma de disco voador, podia ser visto de praticamente qualquer ponto da metrópole, servindo de inevitável ponto de referência para o visitante. Seattle, espaçosamente distribuída em uma vasta planície, era uma cidade úmida e fria, mesmo nos dias de céu profundamente azul de verão. Era a última grande cidade americana a oeste do continente, perfeita para uma última parada antes de se alcançar região fronteiriça com o Canadá. Depois, o Alasca!

O albergue ficava cercado pelas retas e sóbrias paredes de um prédio de dez andares, com instalações de design moderno, o que o tornava bem diferente dos demais estabelecimentos em que ficamos ao longo da viagem. Aspirantes a hóspedes enfileiravam-se em frente a um balcão no hall de entrada, ditavam suas informações pessoais para os entediados recepcionistas e pagavam, em dinheiro vivo, a próxima diária. Em troca, os recepcionistas displicentemente perguntavam:

- Tarefa diária ou noturna? Limpeza ou arrumação?

Isso porque a todos os hóspedes cabiam as tarefas de manutenção do albergue, que não possuía funcionários contratados e por esse motivo só permanecia aberto de cinco da tarde às dez da manhã. Os “recepcionistas”, hóspedes falidos na sua totalidade, eram seres que negociaram pagar diárias devidas realizando um trabalho digno, porém monótono.

Tratava-se de um sistema eficiente, que atendia bem ao seu público-alvo, os turistas backpackers (mochileiros). Garantindo ser sempre baixo o custo de sua manutenção, o albergue podia cobrar diárias realmente baratas e oferecer instalações confortáveis, que incluíam uma ampla cozinha comunitária totalmente equipada e TV a cabo no refeitório. Mais barato do que os albergues, somente a ACM (Associação Cristã de Moços, que os americanos insistem em chamar de YMCA), mas esta se assemelhava mais a um abrigo cuja segurança não era o ponto forte, segundo nos alertaram em algum momento.

As tarefas do albergue de Seattle eram simples e leves: consistiam, se relacionadas à limpeza, na coleta dos sacos de lixo depositados nos compartimentos em cada um dos andares. Os sacos, após serem recolhidos, eram colocados em um carrinho e transportados até a calçada, e deixados em frente à portaria. Tudo sem contato manual com o lixo, pois o hóspede era orientado a usar as luvas impermeáveis para realizar as tarefas. Se a tarefa tinha a ver com arrumação, cabia ao hóspede colocar os novos lençóis e colchas limpas nos beliches que haviam sido desocupados pela manhã. Cada um realizava sua tarefa exclusivamente no andar no qual se encontrava alojado.

Pagamos os quinze dólares cada e fomos direto para o quarto, um grande salão com dez beliches, de acesso com um código numérico a ser digitado pelo hóspede na fechadura e que era substituído diariamente. Assim, quando o hóspede pagava a nova diária, ele recebia o código secreto atualizado, somente válido para aquele dia. Simples, mas eficiente, esse sistema procurava oferecer alguma segurança aos hóspedes que deixavam pertences nos quartos, quando se ausentavam em suas turnês turísticas.

Escolhi a cama de cima, num canto próximo à janela. Meus companheiros de viagem conseguiram um beliche vazio próximo ao meu e assim nos alojamos, curiosos a respeito dos nossos parceiros de quarto. O albergue não estava especialmente cheio, mas no quarto em que ficamos já habitavam quatro americanos, um canadense e um italiano, que tinham acabado de retornar de um exaustivo e calorento dia de passeio. Pelo menos era o que indicava o odor que exalavam. Tratamos de nos apresentar e, como sempre, nossa nacionalidade causava algum interesse.

- Brassil? Buenas noches, amigos! Disparou logo Joe, o baixinho americano que já estava bêbado àquela hora. O italiano era o único ali além de nós três que parecia saber que o espanhol não era a língua nativa daquele nosso imenso país sul-americano e ficou curioso sobre o que nos trouxera a Seattle.

- Vamos para o Alasca – expliquei, no italiano que não aprendera de berço.
- Isto é, depois de descobrimos como . – emendei, em português moderno mesmo.

Porque àquela altura dos acontecimentos, não sabíamos como chegaríamos ao Alasca. Nosso escasso dinheiro tinha praticamente se esgotado, tendo restado pouco mais de quinhentos dólares entre nós três. Gastávamos mal, sempre comprando bugingangas no caminho e pagando caro pela péssima comida das lojas de conveniência nas estradas, mas procurávamos nos convencer que, uma vez empregados, ganharíamos mais do que o suficiente para custear as nossas extravagâncias.

Naquela nossa primeira noite em Seattle, resolvemos dar uma circulada, já que ainda teríamos o bom Plymouth em nosso poder até o dia seguinte, quando iríamos finalmente entregá-lo, em alguma garagem nos subúrbios da cidade.

Rodamos sem destino, falando sem parar sobre como a recepcionista do albergue era gostosa, até que nos deparamos com um lugar que parecia bastante animado. Festa! Música ao vivo! Era uma enorme loja de roupas jovens e era claro que algo de especial estava acontecendo por lá, já que havia um grande burburinho dentro e fora do lugar. Fomos conferir e nos vimos penetras na festa de lançamento de uma coleção de jeans, na qual uma banda de grunge rock se apresentava, talvez o Nirvana bem no início da carreira. Seria bem conveniente...pois alí era o paraíso na terra pra gente, até porque era de graça a entrada.

Gatas e rock na primeira noite em Seattle não era pouco para nós, cansados viajantes, cujo futuro nos pareceria um tanto incerto pela manhã.

segunda-feira, 17 de maio de 2010

A Caverna

Manhattan Beach era uma cidadezinha de praia no Sul da Califórnia, que mal aparecia nos mapas de Los Angeles. Um pouco maior que o bairro de Ipanema, que ficava na minha distante cidade natal do Rio de Janeiro, Manhattan era quase tão bonita, ponteada por uma longa praia de areia fofa e águas escuras, frias e freqüentemente turbulentas. Possuía uma ciclovia construída sobre a areia que percorria toda a sua extensão, por vezes bem perto das casas que ficavam debruçadas na praia, quase rente ao mar, até que se encontrava com o marco imaginário que separava Manhattan de sua praia irmã, Hermosa Beach.

Protegidos do mar escuro e gelado nas suas roupas de neoprene, nem sempre amarelas e pretas, os surfistas disputavam marolas sob o antigo píer de pescadores, perigosamente próximos das colunas cravejadas de cracas e mariscos, que se erguiam da água por uns dez metros e sustentavam sua enorme estrutura. O píer de Manhattan Beach, construído nos anos mil novecentos e vinte e cuja estrutura metálica eu futuramente passaria semanas a pintar com uma tinta azul celeste pegajosa, abrigava em sua extremidade, frente ao Pacífico, um museu aquático desinteressante, repleto de fotos amareladas de pescadores bronzeados nas paredes e frascos de formol com seres gosmentos nas prateleiras empoeiradas.

Alguns distraídos pescadores na verdade davam de comer aos peixes, que muito raramente engoliam os anzóis também, apenas para tornarem-se iscas frescas, ou serem atirados de volta à água, de tão pequenos. Nunca havia visto um sortudo pescar qualquer ser marinho daquele píer que fosse muito maior do que as iscas que usava. Mesmo assim, no tal museu acumulavam-se fotos de peixes enormes que tinham sido capturados daquele píer, possivelmente uns vinte ou trinta anos antes. Tinha até uma foto de um tubarão, coitado, pendurado de ponta cabeça ao lado do orgulhoso predador.

Espalhada sobre uma íngreme colina, a pequena cidade oferecia a bela vista marinha para muitas das grandes casas sem muros ou cercas, ao longo dos “degraus” formados por ruas estreitas e com pouco movimento de carros e pedestres. O centro de Manhattan Beach era generoso no número de restaurantes de cardápio mexicano ou de frutos do mar,todos avidamente freqüentados por gente que pouco sabia sobre salário-imigrante ou gorjetas.

Quase no limite entre Manhattan e Hermosa Beach e umas quatro quadras da praia dali, ficava a quarta rua. Nessa rua, o número 225 pertencia a uma discreta casa de madeira de cor azul, de pintura um tanto descascada, com dois andares e um deque de madeira suspenso sobre a rua secundária. Lá no térreo, junto à garagem onde uma Ferrari Testarossa repousava de seus breves passeios de domingo, via-se uma pequena porta, sem qualquer indicação ou número. Dois degraus abaixo, além de um curto e estreito corredor, que separava o banheiro de um closet desproporcionalmente grande, avistava-se um cômodo. Um único aposento de teto baixo, com um beliche de apenas uma cama de casal. Uma minúscula cozinha e uma janela, que servia de acesso para um jardim externo completavam o apartamento. Um modesto paraíso para jovens brasileiros imigrantes, um cubículo subterrâneo à beira-mar; imagina só um andar térreo transformado em apartamento de solteiros: esta era a Caverna.

Ao chegar de volta de Hermosa e entrar na Caverna, encontrei meu amigo e "senhorio" Pepe já à minha espera e parecia estar afobado. Olhava para seu relógio de pulso, como o coelho da Alice faria, e me disse, ansioso:

- Vamos, rápido. Tenho um trabalho para você. Não podemos demorar, veste essa camisa branca, que eu te explico no caminho.

Deu uma risadinha e completou:

- Finalmente você vai poder me pagar o aluguel atrasado!

Não era hora para fazer perguntas. Imediatamente vesti umas bermudas velhas, calcei minhas surradas botas de trabalho e entrei na tal camisa, que tinha nas costas escrito “Jean Phillip Gerard Interior and Exterior Painting”. E lá fui, encontrando um lugar perto da janela, no "Paintermobile", o valente caminhão branco da companhia, que abrigava o equipamento de pintura que usaríamos, de pincéis a escadas, tudo em seus quinhentos mil compartimentos, bem guardadinho. Começava ali a carreira do pintor mais desajeitado do mundo, que nunca havia segurado uma broxa antes na vida.

Algumas horas depois, à mesa de um restaurante mexicano, ao lado de meu novo franco-americano chefe, cujo nome você já adivinhou, eu almoçava um gordurosamente suculento Super De Luxe Burrito, regado por uma cerveja estupidamente. Fiquei pensando no estranho simbolismo de tudo aquilo… Como algumas horas antes eu estava dando meus últimos centavos a um pedinte americano, em Hermosa Beach.

Agora, eu estava empregado a cinco dólares a hora, numa pequena firma de pintura de Manhattan Beach e começava a achar razoável utilizar quase todo o meu salário para pagar o aluguel da pitoresca Caverna à beira-mar.

Foi quando me dei conta que há alguns meses atrás outra reviravolta desse tipo tinha ocorrido, lá no albergue de Anchorage, naquela estranha tarde quando a Pat, que me atendeu no balcão enquanto eu fechava a conta, me olhou curiosa e perguntou por que eu estava indo embora do Alasca. Se eu não tinha gostado, ou o quê. E a verdade era que os meus verdes dólares tinham simplesmente acabado. Finished. Eu disse isso a ela, que então gentilmente me convidou a hospedar-me em sua bela e confortável casa e fazer parte de sua família enquanto estivesse no Alasca.

Então eu concluí que era lá, no olho do furacão, daquele lugar de onde eu olhava, temporariamente protegido contra toda a confusão e destruição, que morava a esperança.

sexta-feira, 14 de maio de 2010

POKESDOWN

A casa 7 ficava perto de uma estação de trem chamada Pokesdown, num bairro classe média-baixa da cidade de Bournemouth. Para este detalhe da classe social predominante do bairro, eu só atentei depois que o Daniel me avisou para tomar cuidado, porque era perigoso andar sozinho à noite. Um brasileiro como eu nunca chegaria a qualquer conclusão como essa, já que os bairros pobres do nosso país são muito fáceis de identificar e não tinham nada a ver com Pokesdown. Bairro que pode se gabar de ser pobre no Brasil não tem calçamento decente nas ruas, tem casas caindo aos pedaços e, é claro, gente pouco abastada rondando em procura do que fazer para ganhar a única refeição do dia.
Em Pokesdown as ruas eram bem pavimentadas, com várias lojas reluzentes e um lindo parque arborizado cujas trilhas levavam ao mar, passando por belas vistas da praia de areia e pedrinhas abaixo. A casa 7 não era nova, isso é verdade. Estava mesmo precisando de uma reforma, mas estava tudo lá no lugar certo: portas, janelas a prova de som (e de frio) e um bom quintal lotado de ervas daninhas e que tinha até uma árvore magrela.
É que na Inglaterra do início deste século, ninguém era tão pobre assim e os ricos se mudavam para outro país mais moderno, geralmente os Estados Unidos, onde o idioma era quase o mesmo e os impostos saiam mais em conta. A verdade era que os verdadeiros súditos da Rainha-Mãe que não tinham emprego recebiam pelos correios um lindo cheque quinzenal de umas duzentas e poucas libras que davam pra viver dignamente, se o cara não fosse muito ambicioso. É claro que, como era o caso das pessoas da casa 7, os desempregados ou imigrantes como eu acabavam dividindo o aluguel de uma casa grande e cada um ficava com um aposento. Na casa 7 éramos 6: eu, Daniel, O Carneiro, Rossana, Melanie e O Arvorista. Como eram cinco aposentos, O Carneiro e Rossana dormiam juntos e acabaram até namorando e sendo felizes por algumas semanas. É claro que isso foi antes de O Carneiro convidar duas meninas para uma festinha muito divertida, da qual a Ross não gostou nada e até acabou quebrando o vidro da janela com um soco e tentou se suicidar tomando uma caixa inteira de comprimidos para enxaqueca. Não funcionou, é claro, mas ela nunca mais reclamou de dor de cabeça.
Do lado de dentro, a casa era muito curiosa. Na primeira vez que entrei lá, até notei, apesar da penumbra permanente enfumaçada em que a casa se encontrava, que os tapetes e papel de parede haviam sido arrancados sem muito cuidado, deixando à vista as tábuas do chão e das paredes, dando um visual pós-guerra sensacional. Tinha uma coisa muito legal na casa 7, que era a boa música que tocava 24 horas por dia, cortesia da Melanie que também vivia passando os mais novos filmes de Hollywood naquela televisão enorme. Tinha também o entra e sai de clientes da Melanie, que vendia uns comprimidos que deixavam todos muito alegres e amigáveis.
O meu quarto era inicialmente uma espécie de depósito de tralhas, que com alguma arrumação se tornaram um mobiliário útil, já que eu havia me mandado do Brasil com apenas uma mala e alguns instrumentos musicais. Era também o quarto mais frio e eu tinha que dormir completamente vestido no inverno, mesmo com o aquecimento no máximo. Mas eu não tinha o que reclamar: tinha minha privacidade e até um banheiro que ficava ao lado e contava com uma grande banheira daquelas bem antigas, de porcelana.
Quando cheguei, só consegui sair de casa depois de uma semana, quando já estava mais adaptado ao clima gélido daquele mês de novembro e ainda assim me assustei quando vi montes de gelo empilhados pelas calçadas. Eu até pensei, como um bom idiota do hemisfério sul, “ué, quem será que derrubou todo este gelo aqui?” até entender que a natureza tomava este cuidado todo ano, naquela mesma época.
Na esquina tinha uma padaria, daquelas que você não vê mais nas grandes cidades do Brasil, com grandes pães artesanais arrumados nas prateleiras e os deliciosos folhados de carne e legumes, características guloseimas britânicas. No fim da rua tinha uma delegacia, de onde saíam carros com lindas policiais muito maquiadas e algumas ambulâncias histéricas.
Fora da casa 7, as pessoas não eram muito gentis comigo, mas isso eu conto depois.